sábado, 2 de novembro de 2013

Sobre a necessidade de morrer

REVISTA FILOSOFIA (Ano VII n. 87 outubro 2013)

 

Diante do medo e o despreparo para a morte, que acomete
 sobretudo as culturas ocidentais, Heidegger afirma que
 é preciso viver. A angústia do medo da finitude também
 pode vir de uma existência superficial e massificada

Por: Matêus Ramos Cardoso / Wellington Lima Amorim

 

Independente da crença, todos vamos morrer.
Esse é um evento tão comum quanto o fato de nascer,
crescer, ter filhos... Porém, tal assunto causa espanto,
e a morte passa a ser vista como uma desgraça;
mas morrer é um evento natural e, acima de tudo,
: morrer é tão importante quanto nascer.
A morte nos causa tanto medo e angústia que é mais
 cômodo não entrar em contato com ela. O objetivo deste
 artigo é apresentar a ideia de morte como necessidade
para a vida, um elemento que não é antagônico.
É comum percebermos que os indivíduos procuram,
ao máximo, afastarem-se da morte, principalmente nas
sociedades ocidentais, pois o que mais é valorizado em
 tais sociedades é a superficialidade e o narcisismo.
É necessário, também, analisar a morte enquanto direito de morrer,
 bem como a sua beleza e seu potencial singularizador numa
sociedade de massa.
O MEDO DA MORTE De acordo com a interpretação de Sigmund Freud (1856-1939),
na Mitologia grega, a morte aparece como elemento contrário à
integração. Essa força, chamada morte, representada por Tanatos,
alimentaria os desejos destrutivos. Mas, quando operando ao lado da vida,
geraria o equilíbrio. O medo da morte está em contextos antigos, como na
 perspectiva mítica bíblica, segundo Norbert Elias (1897-1990):
“No paraíso, Adão e Eva eram imortais. Deus os condenou a morrer porque Adão,
o homem, violou o mandamento do pai divino. O sentimento de que a morte
é uma punição (...) desempenhou papel considerável no medo humano
da morte por um longo tempo”.¹ A limitada duração de nossa existência
nos força a viver para encarar a morte como um fato, habituando-nos a ela.
Afinal, ela é um problema genuinamente humano, que leva os indivíduos a
se protegerem da aniquilação.
Contudo, o problema não é a morte em si, mas como nos deparamos com ela,
a maneira como a conhecemos: a consciência sobre a morte foi diminuindo com
o passar dos séculos. Isso se deve, também, ao fato de que houve um aumento na

expectativa de vida dos indivíduos, o que mostra um aumento de segurança,
consequentemente um desvio da reflexão sobre a finitude humana. “O espetáculo da morte não é mais corriqueiro. Ficou mais fácil esquecer a morte no curso normal da vida”.² Isso não significa que não ocorra tal evento, mas, que o mesmo não recebe a atenção que lhe é própria, especialmente numa sociedade narcísica, como a contemporânea.

A SOCIEDADE ATUAL ESTIMULA A CULTURA DO NARCISISMO, EXISTE UMA ESPÉCIE DE CRENÇA, QUASE QUE INABALÁVEL EM NOSSA SUPOSTA IMORTALIDADE

Hipnos é a personificação do sono enquanto seu irmão gêmeo Tanatos, o da morte. Ambos habitavam o território de Hades, no mundo subterrâneo
A MORTE NA CULTURA DO NARCISISMO
A sociedade atual estimula a cultura do narcisismo, de tal maneira que existe uma espécie de crença, quase que inabalável, em nossa suposta imortalidade. Daí surge a necessidade de permanecer, em que morrer representa um desastre. As exigências do sucesso provocam enormes desgastes, levando as pessoas a se sentirem obrigadas a atingir objetivos idealizados e a ter que ultrapassar a todo custo suas limitações, indo além do que podem. Consequentemente, isso gera uma supervalorização da vida, de tal maneira que, surge a ilusão da beleza eterna e da jovialidade, próprios da sociedade atual.
Christopher Lasch (1932-1994) é considerado um grande crítico do modelo de vida próprio das sociedades industriais. E é na sua obra, A cultura do narcisismo, que demonstra sua crítica à nossa sociedade. Nessa obra, ele argumenta que existe, de certa maneira, um desinteresse pelo mundo exterior, exceto à medida que ele serve como fonte de gratificação. Temos, então, uma busca de autoidentidade, em uma espécie de narcisismo. Para Lasch, o narcisista representa a dimensão psicológica dessa dependência. Não obstante, em suas ocasionais ilusões de onipotência, o narcisista depende de outros para validar sua autoestima. Ele não consegue viver sem uma plateia. Essa análise nos indica que vivemos em tempos nos quais nossa individualidade depende da aprovação dos outros, nosso mundo interior não tem tanto prestígio: “Porque o temor de amadurecer e de ficar velho persegue nossa sociedade; porque as relações pessoais se tornaram tão instáveis e precárias; e porque a vida interior não mais oferece qualquer refúgio para os perigos que nos envolvem”.³
Para o autor, o que caracteriza tal comportamento seria a superficialidade emocional, uma pseudoautopercepção, assim como o horror à velhice e à morte, restando uma preocupação com a sobrevivência de si.
Na verdade, a preocupação com que o outro possa sobreviver consiste apenas no “eu” que precisa ser reconhecido e ter sua existência garantida. Ora, não que não seja importante a preocupação consigo, mas o que se analisa é a demasiada busca de autopreservação em detrimento do que ocorre fora do próprio círculo. Nesse sentido, o que temos é um projeto de transformação da sociedade que visa ao particular, uma busca de razões políticas que não se encontram em valores universais, mas interesses que satisfaçam o prazer do indivíduo.

NA OBRA de Markus Zusak (1975) intitulada A menina que roubava livros, romance narrado durante a Segunda Guerra Mundial, a morte é vista como companheira. Em meio a tanto sofrimento, a morte é personalizada como uma amiga para aliviar o peso da desgraça. Ela se encarrega de carregar no colo as almas quentes, na frieza e no desespero da guerra

O mito grego de Narciso serviu como base de diversas teorias no decorrer da História. O narcisismo é símbolo da vaidade, do individualismo e da insensibilidade
A preocupação da sociedade atual está desvinculada do passado e do futuro, foca apenas no aqui e no agora. Temos, então, indivíduos com medo de se perderem, que se agarram na busca frenética de uma identidade que os satisfaça e lhes permita ser percebido, e morrer é não mais ser percebido, daí o desespero. Tais seres humanos não se percebem parte da História e sua insegurança não se restringe apenas a questões econômicas, etc., mas também ao medo de não conseguir ser plenamente: “... a ética da autopreservação e da sobrevivência psíquica está, então, radicada não meramente nas condições objetivas da guerra econômica, nas taxas elevadas de crimes e no caos social, mas na experiência subjetiva do vazio e do isolamento”.4 Assim, a consciência de Narciso é o espelho, tão externa a ele, tão transparente e líquida. Os gregos conseguiram, no passado, mostrar a imagem que se destacaria no homem dos tempos pós-modernos, que se perde na contemplação do objeto, procurando ali o próprio sujeito, dessa forma, perde-se na procura de si mesmo. O que chamamos aqui de Ética da sobrevivência. Para Lach, “as pessoas deixam de sonhar com a superação de dificuldades, mas simplesmente passam a sobreviver com elas”.5
A ideia do Narciso é uma maneira de aprofundar o olhar no resultado das recentes mudanças no âmbito da sociedade. Dessa maneira, o modo de vida atual é um auxílio para fazer surgir novos “filhos narcisistas”; outro fator impulsionante é a mídia, que, por meio do bombardeamento de propagandas que incentivam a sobrevivência, realiza tudo isso, potencializando os sonhos narcisistas, sendo eles os sonhos de fama, sonhos de glória, voltando cada vez mais o olhar para o alto, para as estrelas, para um mundo livre da maldição da contingência, fugindo cada vez mais da realidade, finita e mortal.

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